Ando lendo sobre experiências de pessoas que passam por momentos de extrema dificuldade e estão diante de um desafio inexorável para todos, sem exceção: vão deixar o corpo físico e iniciar uma nova jornada espiritual. Consigo identificar diferentes apelos nas inúmeras narrativas: alguns gostariam apenas de se reconciliarem com alguém, outras querem apoio e lucidez para partir, algumas desejam o perdão de alguma pessoa e muitas sentem elevado grau de arrependimento, seja porque se afastaram da família pela pressão de trabalho ou por terem postergado sonhos engavetados e por não terem expressado sua verdadeira competência essencial. Mas todas dizem que deveriam ter feito delas mesmas pessoas mais felizes.

Ao extrair ensinamentos dos relatos, vejo que podemos realizar o apelo da alma, aquilo que vem do profundo do ser e está ligado às nossas melhores sementes, àquilo que está sob o nosso controle. Coisas simples, como o retorno de uma ligação, palavras afetuosas que economizamos por algum motivo, retomar relações que abandonamos por puro desleixo, um pedido de perdão… São tantos gestos simples que fariam diferença e agregariam um profundo valor na vida de alguém e, principalmente, na nossa.

“Mais do que mil palavras sem sentido, vale uma única palavra que traz consolo a quem a ouve”
(Dammapadha)

Outro aspecto fundamental é a realização dos sonhos, não os sonhos mentais, aqueles motivados pelos desejos do ego, mas fazer algo que nos leva à expressão do Ser Espiritual que somos, aquilo que está profundamente ligado ao nosso arquétipo. O fato é que as máscaras da personalidade que construímos para viver com o “aceite social”, acaba nos afastando ainda mais desse núcleo primordial e, por conseguinte, temos dificuldade de expressar nossas melhores virtudes, ligadas ao amor, à fraternidade e à compaixão. Estamos grávidos do bem, mas parece que os condicionamentos impedem o rompimento das cascas das sementes do bem e ficamos presos às correntes mentais, impedindo o nascimento do nosso Ser.

As vezes, são sonhos simples, como ajudar numa creche, numa ONG ou num asilo, fazer um trabalho voluntário em uma missão humanitária, fazer atendimentos a moradores de rua, pintar telas, tocar um instrumento, contar histórias para crianças em hospitais, … são incontáveis oportunidades. Por que não viver agora uma vida ainda não-vivida? Todos nós precisamos dar nosso recado para o mundo e ser aquilo para o qual fomos destinados a ser.

“O que quer que possa fazer, ou sonha fazer, comece. A ousadia encerra em si mesma genialidade, magia e poder. Comece agora”
(Goethe)

A filósofa Lucia Helena Galvão faz uma interessante analogia, em sua live com a jornalista Ana Michele Soares. Imaginar uma vela, a qual, pela beleza, fica guardada anos a fio sem ter sido acesa. Tempos depois, em algumas cidades de clima mais seco, o processo de decomposição acaba por esfarelá-la, e ai não pode ser mais acendida, e, assim, não cumpre seu papel principal, que é dar a luz. “Ela morre sem nunca ter nascido como vela”.

Outros questionamentos vêm à mente: por que não dar flores em vida? Por que esperar os momentos finais, quando o jogo já está na prorrogação, para fazer um elogio, dar um testemunho positivo, valorizar o outro, fazer as pazes com os filhos, reconciliar-se com os pais e irmãos, … fazer aquilo que certamente aliviaria nossa mochila e inspiraria o bem em nós e nos outros? Por postergar isso, acabamos por não conhecer a felicidade plena e ficamos reféns de momentos fugidios de alegrias.

“… por isso é que eu penso assim, se alguém quiser fazer por mim, que faça agora. Me dê flores em vida, o carinho, a mão amiga, para aliviar meus ais”
Nelson CavaquinhoMúsica: Quando eu me chamar saudade

Um dos livros que têm me ensinado bastante é “A guerra da arte”, de Steven Pressfield, quando o autor relata o trabalho da Fundação Tom Laughlin, que cuida de pessoas com câncer. Livro encorajador e essencial para entender nossas resistências internas, aquelas que surgem sempre que tentamos “pensar fora da caixa”, e que nos ajuda também a vencer a nós mesmos.

“No momento em que uma pessoa fica sabendo que tem câncer terminal, uma mudança profunda ocorre em sua psique. De um só golpe, no consultório do médico, ela fica sabendo o que realmente importa para ela. Coisas que há sessenta segundos antes pareciam absolutamente importantes, de repente perdem todo o sentido, enquanto que pessoas e preocupações que até então ela havia descartado imediatamente, agora assumem uma importância absoluta.”
(Steven Pressfield)

O autor se baseia no fato de que quando acontece uma notícia desse porte, o foco da consciência muda, do ego para o Ser Interno, e ai passamos a ver um mundo inteiramente novo e começamos a discernir sobre o que é verdadeiramente importante na vida. As preocupações superficiais se desvanecem, sendo substituídas por uma perspectiva mais profunda. Certamente, por vivermos como cidadãos da nossa mente e escravizados pelo ego, existem coisas vitais que deixamos de fazer e palavras essenciais que não foram ditas. Acho que a gente economiza afeto.

Steven diz também que o trabalho psicológico desta fundação no combate ao câncer recomenda a seus pacientes a fazerem a mudança, não somente no nível da mente, mas também colocando em prática em suas vidas as questões ligadas à vocação da alma de cada uma delas, aquilo que faz realmente um sentido para suas vidas. Milagrosamente, o câncer começa a regredir. As pessoas se recuperam.”

Sobre a economia de afetos, vou pegar uma carona nos livros da Dra Ana Cláudia Quintana, uma autoridade no tema Cuidados Paliativos e que acolhe e trata de centenas de pacientes terminais há mais de vinte anos. No seu livro “A morte é um dia que vale a pena viver” ela relata:

“Mesmo quando demonstramos um afeto com o qual é difícil lidar, oferecemos à pessoa do outro lado do ringue a oportunidade de também se transformar. O mais bonito é que, ao agir assim, também nos abrimos para a transformação. Sentindo a dor, podemos curar a alma lacrada dentro da mágoa. Só tem cicatrizes quem sobreviveu; quem deixou a ferida aberta, morreu mal.

Chegará ao final da estrada, em frente ao muro final, arrependido por não ter demonstrado afeto por pessoas que podem ter partido antes – a mãe, o filho, a esposa. As chances que perdemos de demonstrar o que sentimos de verdade chegam com toda força no fim da vida. Mas se ainda há tempo para demonstrar esse afeto, e se fizermos isso … ah, é lindo viver essa experiência.”

No fundo, lá no âmago do nosso ser, o que buscamos mesmo é a Verdade sobre quem realmente somos e a vontade de realizar aquilo que o Pai concebeu ao nos criar, ao nos trazer à Luz. Penso que o que precisamos mesmo é de praticar o Amor, aquele que cauteriza e cicatriza as feridas e traz, também, em sua emanação, a cura daqueles à nossa volta.

“Ao longo desse tempo cuidando de tantas pessoas incríveis, percebi que o que faz girar esse eixo de espiritualidade dentro de cada um de nós é o Amor e a Verdade que vivemos com integridade. O Amor que sentimos, pensamos, falamos e vivemos. A Verdade que sentimos, pensamos, falamos e vivemos. Não importa qual é a nossa religião, não importa se acreditamos ou não em Deus. Se a nossa espiritualidade estiver sobre uma base de Amor e Verdade, vivenciados e não apenas conceituados, não importa o caminho que escolhemos, a vida dará sempre certo. Sempre.”
(Dra Ana Claudia Quintana)

Creio, enfim, que podemos atuar como um canal de Luz, como um espelho refletor do bem. Então, se for assim, encerro com a bela citação sobre o Amor da poetisa Adélia Prado:

“O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge o meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão roxo e seco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.”

(Adélia Prado)

Para quem tiver interesse no aprofundamento dos temas deste artigo, seguem algumas indicações:

◆ Livro: A guerra da arte – Steven Pressfield. Editora Ediouro
◆ Livro: Histórias lindas de morrer – Ana Cláudia Quintana Arantes. Editora Sextante
◆ Livro: A morte é um dia que vale a pena viver – Ana Cláudia Quintana Arantes. Editora Sextante
◆ Live: Conversando sobre a essência da vida – Lucia Helena Galvão e Dra. Ana Cláudia. Acesse aqui.
◆ Live: Conversando sobre vida com sentido – Lucia Helena Galvão e Ana Michele. Acesse aqui.
◆ Palestra da Fundação Tom Laughlin: “6 questões chaves para a eficácia no tratamento do câncer” (Áudio e legendas somente em Inglês). Acesse aqui

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