Vivência
Jules Massenet – Meditação Thais

Sentado aqui para escrever esse precioso relato da nossa querida amiga Elen a respeito da sua linda história com seu filho Joãozinho, muitos sentimentos brotam de dentro de mim e, num primeiro momento, sinto-me incapaz de fazer uma síntese de uma experiência tão significativa, um caso real de amor incondicional.

A sensação de incapacidade vai se dissolvendo quando resolvo encarar o desafio e começo a escrever de forma livre, desapegado do resultado final. Penso nas bênçãos que recebo ao conhecer um pouco mais da história do João; de fato uma oportunidade ímpar para redimensionar problemas, descobrir contornos para situações complexas que a vida nos traz e consolidar a máxima de que as ameaças nada mais são do que oportunidades de crescimento. Penso que “crescer em consciência” é a nossa meta maior e muitas vezes uma situação de vida como a deles nos impõe uma reflexão profunda sobre a forma de nos conduzirmos no dia a dia.

Joãozinho tem uma enfermidade rara chamada “Doença de Niemann-Pick”, que são não conformidades metabólicas de origem genética, incomuns, que não têm cura, e que degeneram progressivamente o sistema nervoso central e todas as funções motoras, pelo acúmulo de um tipo de gordura nas células nervosas, que afetam fígado, pulmão, cérebro, baço e medula óssea.

Uma das peculiaridades deste problema é de que quanto mais cedo ele aparece, mais grave se torna; “é como um Alzheimer infantil”, segundo palavras da Elen. Até seus 2,5 anos, Joãozinho falava e andava normalmente, ia para a escola, comia com as próprias mãos, brincava, enfim, uma criança como as demais. Contudo, os sintomas foram aparecendo e a percepção era a de que ele começou a não responder a alguns estímulos, iniciando-se uma intensa pesquisa médica para “fechar” um diagnóstico preciso do problema.

Como o quadro dessa doença é progressivo, hoje, com 10 anos, Joãozinho não fala, não anda, se alimenta através de gastrostomia, um procedimento no qual é colocado um tubo diretamente no estômago para proporcionar suporte nutricional, mas consegue respirar normalmente, sem ajuda mecânica. Como o caso é raro (1 para 180 mil pessoas), os médicos desenvolvem pesquisas nas poucas crianças com essa síndrome, e o Joãozinho é uma delas. Após uma via crucis para conseguir medicamentos subsidiados pelo governo, finalmente Joãozinho faz uso de fármacos especiais que de certa forma desaceleram o processo degenerativo e aliviam a gravidade e a frequência dos sintomas.

Estou omitindo os inúmeros relatos sobre as dificuldades operacionais ao longo dos últimos 9 anos, como as graves crises convulsivas, internações e dificuldades de toda sorte. Acho que podemos explorar um pouco uma questão chave para todos nós, que é a forma com que lidamos com os nossos desafios, com as duras provas que a vida nos apresenta.

Há fatos e situações impostas pelo destino, e parecem que são inexoráveis, contudo, e apesar do tamanho da prova, o aliviar da mochila pode estar ligado ao tanto de amor que colocamos no processo e o grau de aceitação da situação. Não se trata de uma aceitação mental, mas um “sim” que vem do profundo da alma, humilde, reverente, certo de que uma Sabedoria Infinita, muito além da nossa compreensão, tudo regula e tudo sabe a nosso respeito.

Por paradoxal que possa parecer, parece que a vida nos dignifica com as provas que recebemos, porque se passarmos por elas com humildade e sabedoria muitos poderão se beneficiar com as atitudes positivas que adotarmos diante das mesmas. Lembro aqui da filósofa Lucia Helena Galvão: “as provas são do tamanho dos homens e “alguém” (Deus) te considerou digno de uma prova desse tamanho, achou que você poderia fazer alguma coisa para melhorar o caminho daqueles que vêm atrás.”

Evidente que as provas não cessam com tal compreensão e aceitação, contudo, tudo fica mais leve e mais harmonioso quando nos deixamos guiar por essa Luz, encapsulada dentro de nós. Esse despertar traz o “sim” e com isso vem a paz, uma paz que está encoberta pelas dores da vida.

“A aceitação do inaceitável é a maior fonte de Graça desse mundo. Mesmo em uma situação aparentemente inaceitável e dolorosa existe um profundo bem oculto. Desse modo, encontre a paz que excede todo o entendimento.” (Eckhart Tolle)

Ao telefonar para a Elen para agendar uma conversa ao vivo sobre o Joãozinho, já senti um forte impacto quando ela me disse: “Nunca vou escutar meu filho dizer – mamãe eu te amo – porque nossa linguagem de amor se dá pelo olhar, pelo coração, e eu me contento com isso.” Quando estive com ela recordei o que havia me dito e tive a oportunidade de citar outro filósofo importante da humanidade, Paul Brunton, que resumiu o processo de comunicação entre almas, um dos temas centrais da nossa conversa:

“Quando o coração fala ao coração, o que há mais para ser dito?”

Além da comunicação, conversamos muito sobre servir e doar-se ao próximo de forma incondicional, sem gerar expectativas por resultados, sem lamúrias, sem cobranças, sem ressentimentos, sem arrependimentos, sem nada a não ser fazer o bem pelo amor ao bem, pelo prazer de ajudar o outro a florescer como ser humano. Dar o seu melhor a cada dia, visando o bem em si mesmo. Como disse Helena Blavatsky:

“Aquele que faz o seu melhor, faz tudo o que se pode esperar dele”.

Não daria para reproduzir toda a nossa conversa, nem tampouco expressar quão rico foi o encontro, sob pena de termos um texto longo demais. Então, destaco algumas citações da Elen que consolidam minha admiração por sua serenidade, seu espírito compassivo e sua coragem por seguir em frente, sempre erguida. Ela é um carvão incandescente que acende as brasas de quem se aproxima; e foi assim que me senti após o encontro: emocionalmente tocado, espiritualmente aceso e medicado contra potenciais lamúrias.

“Você falou de amor incondicional, sabe que sinto também dessa forma e nem sei te dizer de onde vem essa força. Eu só agradeço. Eu tenho certeza que não estou sozinha, que a força vem do Joãozinho; ele veio muito mais para me ajudar do que eu a ele.”

“Nessa nossa troca eu me beneficio e aprendo muito mais do que ele, me sinto muito mais amada do que ele. Através do amor que eu posso dar para o Joãozinho, eu me sinto muito mais amada”.

“Sinto que essa maternidade, que para alguém poderia ser um tormento, é um presente de Deus, porque é uma possibilidade real de crescimento, de aprendizado, de alavancar forças que vão me evoluir e, assim sendo, o peso não vem.”

E a Elen continua a detalhar um pouco mais sobre os problemas do dia a dia, sobre as crises convulsivas do Joãozinho, sobre como é a vida dela de doação:

“O Joãozinho nunca irá casar, não me dará netos, provavelmente vai partir antes de mim, algo que nenhum pai e mãe esperam, mas a troca de amor que eu posso estabelecer com ele vem justamente naqueles momentos que muitos considerariam como de dificuldade extrema.”

“Passar uma madrugada acordada cuidando dele, reconhecer a fragilidade da doença e ter que de uma hora para outra mudar toda a programação por causa de uma crise convulsiva e todos os desdobramentos que isso acarreta. Essa constante doação e anulação da vida, isso que para muitos seria um fardo, sem que eu perceba, é a chance de amar e de crescer.”

“E também não consigo definir com palavras como me sinto amada e tenho certeza que o Joãozinho também sente da mesma forma. O Joãozinho não fala, mas através dos seus grunhidos sei identificar quando ele me chama porque quer brincar, porque está sentindo dor. Falamos pelo olhar.”

“Mas esse amor não era assim antes do Joãozinho adoecer. Antes amava quase que por um dever e uma obrigação. Mas quando ele ficou doente, passei a amar de verdade, com um amor feliz. Que presente maravilhoso!”

“Apesar de franzino, o João tem muita força, muito doce, não chora, não reclama de nada. Essa força que vem dele não me deixa esmorecer, não deixa eu me sentir como uma vítima; a força dele é tão grande que eu me sentiria envergonhada caso tivesse algum resquício de vitimização. Não tive nem tempo para pensar nisso, de me sentir uma vítima.”

“Não tive tempo para chorar, para absorver que tive um filho que nasceu normal e que agora pode desencarnar de uma hora para outra. Vivo com uma espada na cabeça porque não sei como a doença vai evoluir. Então, graças a Deus não tive tempo para pensar em outra coisa a não ser cuidar dele.”

Neste ponto da conversa, pude entender melhor algumas citações do livro Tao-Te King:

“Não deseje para ti o esplendoroso brilho da pedra, mas a rudeza tosca da pedra”.

Se encaradas com sabedoria, as provas podem nos mostrar facetas internas que não conhecíamos, como a capacidade de resignação, a paciência, o perdão, a compaixão do ser, um amor sem limites.

Certamente que “essa ajuda que não sei de onde vem”, conforme relato da Elen, creio que é o verdadeiro despertar da Luz Interna do ser, a expressão da alma e dos seus atributos. E devemos nos mover por essa Luz, pois somente ela é capaz de produzir os frutos de um amor ilimitado e incondicional. Para quem tem a Graça deste despertar, de reconhecer esse toque do Divino dentro de si mesmo, sua própria presença é esse fruto, o néctar que alimenta e cura.

Seguindo em frente, Elen me lembrou de outras crianças especiais com o mesmo problema, mas que reagem de forma agressiva e trazem um grau de dificuldade muito maior para o tratamento e o convívio. Falamos sobre outras mães e pais responsáveis por conduzir esses seres especiais, sobre maternidade, enfim, uma conversa livre sobre a viagem deles.

“Uma maternidade de um ser especial é como uma viagem que você planeja durante toda uma vida, uma viagem dos sonhos; ai você consegue estruturar tudo o que precisa. E esta viagem é para a Europa. O avião parte e no meio do caminho o piloto faz um pouso ainda no território brasileiro e fala para você descer.”

“O piloto diz que, apesar de você ter tudo planejado, contudo terá que descer. Acabou o sonho da Europa para você. A princípio, vem a revolta, mas agora, com mais maturidade e com a Graça que recebemos, percebo que Deus fez com que eu me sentisse muito mais feliz aqui; a pausa para descer foi a melhor coisa que podia ter acontecido: a Europa é aqui.”

Aproveitamos o exemplo para reforçar que o piloto é Deus, essa Sabedoria Infinita, e ratificamos sobre as bênçãos que a dificuldade traz, porque através dela nos é permitido acessar nossa grandeza interior e nos tornarmos, assim, um ser humano melhor. Descobrimos que a Europa foi fruto do desejo mental, não aderente à missão programada pelo Divino para essa etapa da sua vida.

Elen me falou também sobre como tudo agora está mais tranquilo em todos os sentidos, após 9 anos de grandes traumas e problemas. Tem acesso aos medicamentos conseguidos a duras penas junto ao governo e conta hoje com o suporte do plano de saúde que instalou um home care na sua casa, com 2 enfermeiras, fonoaudióloga e cobertura financeira de todos os custos envolvidos. Mas a tranquilidade maior está no seu estado de espírito atual: leve, feliz, renascida, realizada como mãe e sentindo-se amada e agraciada pela vida. Passou, enfim, por uma cura profunda em todos os níveis do seu ser.

Como falei anteriormente, sinto-me honrado e muito grato por ter conhecido a história do Joãozinho, mesmo que superficialmente, porque em muitos momentos peguei atalhos para não aprofundar nos detalhes além do necessário e também para me preservar emocionalmente. Sou mais grato ainda por sentir no coração uma relação entre mãe e filho que exemplificam o que os filósofos chamam de Unidade. Como gosto de poemas, lembrei de Rumi, poeta Afegão, que sintetizou com sabedoria a questão da Unidade:

“Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.

Nos mostramos e nos escondemos: tu em mim, eu em ti.

Eis aqui o sentido profundo da minha relação contigo.

Porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu.”

Relato: Humberto e Elen.

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